segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Macron, um rei sem coroa

Já foi comparado a Napoleão, mas a figura que inspira o presidente francês é a de um monarca. Nesta semana, remodelou seu Governo. Sua autoridade agora é vista como autoritarismo

Foto: brasil.elpais.com


Carla Nogueira e Juliana Coelho
Fonte: Marc Bassets, brasil.elpais.com (Adaptado),
em 29/10/2018

O presidente francês, Emmanuel Macron, chegou 20 minutos atrasado ao encontro com os reis da Espanha no Grande Palais de Paris, onde visitariam juntos uma exposição de Miró. O carro oficial de Felipe VI e Letizia ficou dando voltas pelas ruas próximas até que Macron e sua esposa, Brigitte, chegaram. Era 5 de outubro. Não era a primeira vez que ocorria — em julho, Macron compareceu com uma hora e 15 minutos de atraso a um jantar no Palácio Real de Madri. O incidente não tem maior gravidade, mas é revelador. Da arbitrariedade com que Macron administra seu tempo. E do paradoxal caráter monárquico que envolve a instituição da presidência da República Francesa. 
Se houver desconfiança, a autoridade se torna autoritarismo. Macron quis ser um rei: sem dizer com estas palavras, argumentou nesse sentido antes de chegar ao poder. Nesta semana, obrigado pela deserção do ministro do Interior, Gérard Collomb, remodelou o Gabinete: saem quatro ministros e secretários de Estado e entram oito, mas “não há hoje nem um giro nem uma mudança de rumo ou de política”, como disse em uma mensagem televisiva à nação. Tampouco houve mudança em um traço notável dele: a tendência a se cercar de ministros de pouco peso político, a ser ele o ministro de tudo. 
Tudo é teorizado, e a reflexão vale para outros países: que limites o poder presidencial exige? Qual é a linha que separa autoridade de autoritarismo, ou popularidade de populismo? Como exercer o poder num tempo em que este se desagrega, numa era do “fim do poder”. 
Em 2015, quando faltava um ano e meio para que ganhasse o segundo turno das eleições presidenciais, Macron descreveu como concebia o exercício do poder. “A democracia implica sempre que há algo incompleto, porque por si só não basta. Na política francesa, o ausente é a figura do rei, cuja morte acho que o povo francês fundamentalmente não quis. O terror cavou um vazio emocional, imaginário”, disse numa entrevista à publicação Le 1. Macron falava da revolução de 1789, da execução de Luís XVI em 1793 e do período de violência e repressão. “Mais tarde, tentou-se preencher o vazio: foram, sobretudo, os momentos napoleônico e gaullista”, prosseguia o futuro presidente, aludindo a Napoleão Bonaparte e ao general Charles de Gaulle o regime democrático atual. “No resto do tempo, a democracia francesa não preenche o espaço. Isto se vê bem com o questionamento permanente em torno da figura  presidencial, vigente desde a saída do general De Gaulle. Depois dele, a normalização da figura presidencial reinstalou uma cadeira vazia no coração da vida  política.” 
Foto: elsevierweekblad.nl

Macron, depois de ganhar as eleições em 2017, deixou claro que desejava encher o vazio deixado por Luís XVI ao ser guilhotinado. Multiplicou os gestos. O passeio pela Champs Elysées após sua posse, num veículo militar aberto. O convite ao presidente russo, Vladimir Putin, para o palácio de Versalhes: a pompa do Antigo Regime como arma eleitoral. A maioria na Assembleia Nacional que deixava ao país sem uma oposição preparada para a alternância. O desejo de marcar distância do seu antecessor, François Hollande, um homem que se olhava no espelho e custava a se ver no cargo. A vontade de ser mais parco que Hollande em palavras. Por seu ímpeto juvenil, era comparado a Napoleão Bonaparte e a Napoleão III. Por seu afã de acabar com o método de governar verticalmemte, e pelo interesse pelo o Antigo Regime, foi caricaturado como Luís XIV. 
“O ponto de partida de tudo isto não é Macron: são as instituições da V República”, diz em seu escritório Alain Minc, conselheiro de presidentes e um dos mentores de Macron. “A França é uma monarquia republicana. Quando o presidente não entende isto, fracassa. Foi o caso de François Hollande, que se comportou como um primeiro-ministro de coalizão num país escandinavo. Não ocupou a função de presidente, com tudo o que tem de autoritária. Isto influiu na filosofia do poder de Macron. Porque esteve no Eliseu com Hollande e viu que o poder presidencial não era usado. Retornou a uma concepção clássica da V República.” 
Os franceses, para Macron, “são infelizes quando a política se reduz a uma técnica”. “Gostam que haja uma história. Eu sou a prova viva!”, proclamou em maio passado numa entrevista à revista literária Nouvelle Revue Française. Sua trajetória poderia ser o argumento de um romance do século XIX. “Na verdade, não sou senão a emanação do gosto do povo francês pelo novelesco”, comentou. 
Uma reportagem no Le Monde por ocasião do primeiro aniversário de sua presidência se referia à teoria que o historiador Ernst Kantorowicz expôs no clássico Os Dois Corpos do Rei sobre a combinação, na figura do soberano, de um aspecto temporário e humano, e outro institucional e eterno. Seus antecessores imediatos, François Hollande e Nicolas Sarkozy, dizia o artigo: eram humanos, demasiado humanos. Macron quis reconciliar ambos os corpos: sintetizar o ser humano e o líder que encarnava uma instituição. Daí a importância da liturgia republicana e da busca obsessiva do contato com o povo, esquivando o Parlamento: os sindicatos, as entidades patronais, a sociedade civil. 
Os banhos de massas remetem, segundo os assessores do presidente, a outro clássico da história do século XX, Os Reis Taumaturgos, de Marc Bloch. “[Para Macron] tocar é fundamental: é uma segunda linguagem”, disse ao Le Monde seu assessor Bruno Roger-Petit. “É um toque performático: ‘O rei te toca, Deus te cura’. Há aqui uma forma de transcendência.” 
Macron não faz milagres tocando os seus concidadãos. Mas houve algo de fervor místico na ideia de que a chegada de um presidente jovem e inteligente, alheio aos velhos partidos e com promessas de renovação, serviria para liberar a França do fantasma da decadência e para frear na Europa a onda de populismo e nacionalismo que meses antes havia triunfado nos Estados Unidos com Donald Trump e no Reino Unido com o Brexit 
O historiador Stanis Perez, autor do Corps du Roi (“o corpo do rei”), recorda que, ao chegar ao poder, Macron era o que os romanos chamavam de homo novus: sem experiência, sem cargos eletivos e desconhecido. “Foi necessário compensar essa relativa virgindade política com sinais ostensivos”, diz Perez numa entrevista por telefone. O historiador estabelece uma diferença entre a encarnação do poder no corpo do rei durante o Antigo Regime e agora. Em seu apogeu, o corpo era visível na corte quase sempre. “Tudo era teatralizado, porque tudo era público.” A encenação não desapareceu — é inclusive mais enfática e alcança um público mais amplo que no século XVII —, mas não é completa e está controlada: a corte não assiste ao despertar e ao deitar-se de Macron. Foi dessacralizada. 
O mesmo ocorre com o aspecto taumatúrgico. “O contato físico é importante, mas separado de toda espiritualidade e com um contexto laico. Pode parecer uma monarquia, mas é uma monarquia falsa: o espetáculo monárquico sem a espiritualidade”, diz. O perigo do que Stanis Perez chama de “majestade do governante” é que, quando o país funciona, ninguém a questiona.

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