domingo, 4 de novembro de 2018

O menino que viaja sozinho entre os milhares de hondurenhos

Mario Castellanos foge do recrutamento por gangues em San Pedro Sula, Honduras


Mario Castellanos de 12 anos
Foto: folha.uol.com.br


Carla Nogueira e Juliana Coelho
Fonte: BBC News, folha.uol.com.br (Adaptado),
em 29/10/2018

“Você sabe bem como uma mãe se sente sem seu filho. Se eu não deixo este mundo, é porque o único que pode nos levar embora é o nosso pai celestial.” Assim relata sua angústia Dilsia Murillo, 36, mãe de Mario Castellanos, um menino de Honduras que viaja sozinho na caravana de imigrantes que buscam entrar nos Estados Unidos.    Mario, 12, partiu no sábado da semana passada de San Pedro Sula, no norte de Honduras, e, na tarde da última sexta-feira (19), estava em meio as milhares de pessoas que tentavam cruzar a ponte na fronteira entre a Guatemala e o México. Mario foi um dos primeiros que tentou fazer a travessia e, assim como outros, aparentemente tentou se atirar no rio abaixo quando sua passagem foi bloqueada pela polícia mexicana. Segundo ele conta, um policial o pegou pelo pescoço e o atirou no chão, ferindo-o. Ele também foi afetado pelo gás lacrimogêneo lançado pela polícia. Depois do incidente, foi atendido no posto de imigração. 
“Em Honduras, as pessoas sofrem”, disse ele à BBC. Mario conta que, em seu país, ele não frequentava a escola. Em vez disso, ia ao centro de sua cidade vender chicletes para conseguir algum dinheiro. “Queriam que eu entrasse para uma gangue. Diziam que me pagariam bem, mas eu não queria.” 
Sua mãe diz que a família vive em condições muito difíceis. O pai de Mario trabalha como vigia. “Digo a Mario que, quando temos o que comer, ele tem de comer. Quando não temos, ele tem de aguentar”, afirma Dilsia. Ela se lembra que, em algumas ocasiões, o menino lhe disse que queria ir para os Estados Unidos, porque lá podia “ganhar muito dinheiro”. 
Dilsia afirma que o menino falou para os pais que ia ao centro da cidade e voltaria mais tarde. Mas horas se passaram, e Mario não voltou. “Umas amigas me avisaram por telefone que o tinham visto na televisão”, diz ela. 
Assim como outros que participam da caravana, Mario conta ter encontrado pelo caminho muita gente que o ajuda. “As pessoas são boas, me dão comida”, diz. Ele diz que, na caravana, todos já o conhecem. “Cada vez que quero voltar, me fazem ir adiante”,  
diz e ri. 
A última vez em que ele falou com sua mãe foi no dia 15 de outubro. Dilsia sente saudades, mas não é totalmente contrária ao fato de ele estar com a caravana. “Se ele puder atravessar são e salvo, melhor para ele. Mas, se não, é melhor que venha para cá”, diz.  Mario é uma das pessoas que saíram em caravana de San Pedro Sula rumo ao México.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Espionagem na Espanha franquista


Foto: brasil.elpais.com


Carla Nogueira e Juliana Coelho
Fonte: Miguel González, brasil.elpais.com (Adaptado),
em 29/10/2018

Outubro de 1968. Passaram-se cinco meses do maio francês, e a universidade espanhola está em ebulição. O Serviço de Inteligência Militar da Marinha da Espanha informa que “começou a ser montado o Serviço de Escuta na Universidade, o qual consta de aproximadamente seis trios distribuídos entre as diferentes faculdades. Graças a esse serviço, começa a auscultar-se bem mais de perto a realidade universitária de Barcelona”. A comunicação dos espiões militares prenuncia iminentes “algazarras de caráter revolucionário”. 
Esta nota está incluída em uma das 1.022 caixas com documentos da Segunda Seção (Inteligência) do Estado Maior Central do Exército espanhol, guardados no Arquivo Geral Militar de Ávila (107 quilômetros a noroeste de Madri). Em 20 de setembro, a ministra espanhola da Defesa, Margarita Robles, autorizou, embora com muitas limitações, o acesso aos relatórios secretos anteriores a 1968, quando entrou em vigor a atual Lei de Segredos Oficiais daquele país, que abarcam parte do período da ditadura de Francisco Franco (1939-1975). Durante quase três semanas, o EL PAÍS mergulhou numa documentação que ainda não foi informatizada, catalogada nem descrita, e cuja consulta está restrita a pesquisadores. 
A nota que informa sobre a instalação de sistemas de escuta na Universidade de Barcelona não é um caso isolado. Outro relatório, de dezembro de 1961, relata as queixas contra o aumento de preços no refeitório da Faculdade de Filosofia e Letras de Madri. Os líderes do protesto eram três estudantes: Fernando Sánchez DragóLuis Gómez Llorente e Alberto Míguez, “todos pró-comunistas e socialistas”. Recuperada a democracia, o primeiro deles ganharia o Prêmio Nacional de Ensaio, o segundo chegaria a vice-presidente do Congresso dos Deputados pelo PSOE, e o terceiro se tornaria jornalista do diário La Vanguardia. 
Que fazia o Exército franquista fuçando na universidade? O capitão-geral (chefe da guarnição militar) de Burgos escreve em agosto de 1959 a um amigo seu, chefe do Estado-Maior Central, reclamando que seus subordinados precisam se dedicar à “vigilância de elementos civis suspeitos, estabelecimento de estrangeiros em populações costeiras, entrada e saída de navios” e outras tarefas que “os distraem da sua missão principal, que considero ser a informação interna dos corpos”. 
O chefe do serviço de informação se vê obrigado a justificar sua tarefa. “Este serviço ausculta todas ou quase todas as atividades da Nação. [O combate a] conflitos sociais, greves, paralisações operárias e atividades extremistas está ligado ao vital interesse nacional, tanto ou mais que o puramente militar”, escreve. 
Dentro da segunda seção havia um órgão ainda mais secreto: a chamada Segunda Bis. Se a parte visível era responsável pela informação operacional e estratégica, com o apoio fundamental dos adidos militares, a oculta se dedicava a espionar supostos inimigos do regime, com o auxílio de equipamentos em todas as regiões militares e uma rede de informantes dentro e fora da Espanha. A Segunda Bis é a única unidade do Estado-Maior Central que dispunha de verba para gastos secretos. Em 1957, era de 311.455 pesetas (cerca de 430.000 reais, pelo valor atual). Uma fortuna para um país subdesenvolvido como a Espanha daquela época, cuja renda per capita era equivalente a um décimo da atual. 
A Segunda Bis do Exército de Terra (e em menor medida da Marinha e da Força Aérea) foi parte do tripé de sustentação do aparato de espionagem política da ditadura, junto com o Serviço de Informação da Guarda Civil e a Brigada Político-Social da Polícia. Só no final do franquismo viria a ceder essa função ao Serviço Central de Documentação (Seced) da Presidência do Governo, criado em 1972 pelo almirante Carrero Blanco. 
Na década de 1940, a máxima preocupação da Segunda Bis e do próprio regime eram os vermelhos exilados na França e os maquis guerrilheiros antinazistas da França que em outubro de 1944 protagonizam uma tentativa de invasão do vale de Arán (Catalunha), que acabou em fiasco por não resultar na esperada sublevação popular no interior da Espanha. 
Em 19 de dezembro de 1939, oito meses depois do fim da Guerra Civil, o Estado-Maior francês informou ao adido de Franco em Paris que “o número de milicianos [espanhóis] presentes na França é de 98.000 aproximadamente. A maior parte deles”, especifica, “serve como voluntários em companhias de trabalhadores ou foram alocados na indústria e agricultura”. Além disso, acrescenta, “há nos campos 40.000 refugiados adicionais, entre crianças e idosos”. O adido tranquiliza Madri anunciando que “até o final do ano só restarão nos campos do sudoeste [junto à fronteira espanhola] pouquíssimos milicianos, quase todos mutilados, doentes incuráveis ou homens fisicamente inaptos para qualquer emprego”. 
Em maio de 1940, a Alemanha nazista invade a França. Os refugiados espanhóis iniciam um segundo exílio, são deportados para campos de concentração ou aderem à resistência. 
Depois da derrota de Hitler, o regime franquista se torna um pária. Um telegrama do Estado-Maior Central em 10 de janeiro de 1947, dirigido às três capitanias-gerais dos Pirineus, informa que “o Governo espanhol tem notícias do iminente reconhecimento do Governo Giral pelo francês”. Prevendo possíveis incidentes na fronteira, o Ministro do Exército ordena que sejam reforçadas as medidas de vigilância, interrompendo os acessos à mesma”. 
O temor do regime não se materializou. O Governo republicano espanhol no exílio, comandado por José Giral, não foi reconhecido pela França, só por alguns países latino-americanos, e se dissolveu pouco tempo depois por causa das divisões nas forças antifranquistas. Os relatórios diários da Segunda Bis nos primeiros anos do franquismo parecem informes de guerra. Dez anos depois do fim da Guerra Civil (1936-39), as planilhas do Estado-Maior Central refletem uma média de 40 “rebeldes” mortos por mês. 
O boletim de 2 de abril de 1949 resenha laconicamente que “em 29 de março, forças da Guarda Civil procederam à detenção de dois cúmplices dos bandoleiros em Vega del Codorno (Cuenca), os quais, quando eram conduzidos, tentaram fugir, por isso abriu-se fogo contra eles, resultando em sua morte”. Essa prática tão frequente tinha o nome de lei de  fugas. 
A atitude das autoridades francesas foi se alterando em favor da ditadura e contra os republicanos. Em 1948, a França reabre a fronteira, e o adido de Franco em Paris informa que os exilados espanhóis são obrigados a informar à polícia francesa sobre todos os seus deslocamentos. Os serviços de informação do país vizinho, relata em 1949, têm uma “nítida orientação anticomunista” e “grampearam os telefones” dos comunistas espanhóis.  
O exílio espanhol estava minado. O representante franquista se gaba com seus superiores de contar com “os serviços de um informante que é excelente e que está completamente metido nos ambientes vermelhos espanhóis em Paris”.

Macron, um rei sem coroa

Já foi comparado a Napoleão, mas a figura que inspira o presidente francês é a de um monarca. Nesta semana, remodelou seu Governo. Sua autoridade agora é vista como autoritarismo

Foto: brasil.elpais.com


Carla Nogueira e Juliana Coelho
Fonte: Marc Bassets, brasil.elpais.com (Adaptado),
em 29/10/2018

O presidente francês, Emmanuel Macron, chegou 20 minutos atrasado ao encontro com os reis da Espanha no Grande Palais de Paris, onde visitariam juntos uma exposição de Miró. O carro oficial de Felipe VI e Letizia ficou dando voltas pelas ruas próximas até que Macron e sua esposa, Brigitte, chegaram. Era 5 de outubro. Não era a primeira vez que ocorria — em julho, Macron compareceu com uma hora e 15 minutos de atraso a um jantar no Palácio Real de Madri. O incidente não tem maior gravidade, mas é revelador. Da arbitrariedade com que Macron administra seu tempo. E do paradoxal caráter monárquico que envolve a instituição da presidência da República Francesa. 
Se houver desconfiança, a autoridade se torna autoritarismo. Macron quis ser um rei: sem dizer com estas palavras, argumentou nesse sentido antes de chegar ao poder. Nesta semana, obrigado pela deserção do ministro do Interior, Gérard Collomb, remodelou o Gabinete: saem quatro ministros e secretários de Estado e entram oito, mas “não há hoje nem um giro nem uma mudança de rumo ou de política”, como disse em uma mensagem televisiva à nação. Tampouco houve mudança em um traço notável dele: a tendência a se cercar de ministros de pouco peso político, a ser ele o ministro de tudo. 
Tudo é teorizado, e a reflexão vale para outros países: que limites o poder presidencial exige? Qual é a linha que separa autoridade de autoritarismo, ou popularidade de populismo? Como exercer o poder num tempo em que este se desagrega, numa era do “fim do poder”. 
Em 2015, quando faltava um ano e meio para que ganhasse o segundo turno das eleições presidenciais, Macron descreveu como concebia o exercício do poder. “A democracia implica sempre que há algo incompleto, porque por si só não basta. Na política francesa, o ausente é a figura do rei, cuja morte acho que o povo francês fundamentalmente não quis. O terror cavou um vazio emocional, imaginário”, disse numa entrevista à publicação Le 1. Macron falava da revolução de 1789, da execução de Luís XVI em 1793 e do período de violência e repressão. “Mais tarde, tentou-se preencher o vazio: foram, sobretudo, os momentos napoleônico e gaullista”, prosseguia o futuro presidente, aludindo a Napoleão Bonaparte e ao general Charles de Gaulle o regime democrático atual. “No resto do tempo, a democracia francesa não preenche o espaço. Isto se vê bem com o questionamento permanente em torno da figura  presidencial, vigente desde a saída do general De Gaulle. Depois dele, a normalização da figura presidencial reinstalou uma cadeira vazia no coração da vida  política.” 
Foto: elsevierweekblad.nl

Macron, depois de ganhar as eleições em 2017, deixou claro que desejava encher o vazio deixado por Luís XVI ao ser guilhotinado. Multiplicou os gestos. O passeio pela Champs Elysées após sua posse, num veículo militar aberto. O convite ao presidente russo, Vladimir Putin, para o palácio de Versalhes: a pompa do Antigo Regime como arma eleitoral. A maioria na Assembleia Nacional que deixava ao país sem uma oposição preparada para a alternância. O desejo de marcar distância do seu antecessor, François Hollande, um homem que se olhava no espelho e custava a se ver no cargo. A vontade de ser mais parco que Hollande em palavras. Por seu ímpeto juvenil, era comparado a Napoleão Bonaparte e a Napoleão III. Por seu afã de acabar com o método de governar verticalmemte, e pelo interesse pelo o Antigo Regime, foi caricaturado como Luís XIV. 
“O ponto de partida de tudo isto não é Macron: são as instituições da V República”, diz em seu escritório Alain Minc, conselheiro de presidentes e um dos mentores de Macron. “A França é uma monarquia republicana. Quando o presidente não entende isto, fracassa. Foi o caso de François Hollande, que se comportou como um primeiro-ministro de coalizão num país escandinavo. Não ocupou a função de presidente, com tudo o que tem de autoritária. Isto influiu na filosofia do poder de Macron. Porque esteve no Eliseu com Hollande e viu que o poder presidencial não era usado. Retornou a uma concepção clássica da V República.” 
Os franceses, para Macron, “são infelizes quando a política se reduz a uma técnica”. “Gostam que haja uma história. Eu sou a prova viva!”, proclamou em maio passado numa entrevista à revista literária Nouvelle Revue Française. Sua trajetória poderia ser o argumento de um romance do século XIX. “Na verdade, não sou senão a emanação do gosto do povo francês pelo novelesco”, comentou. 
Uma reportagem no Le Monde por ocasião do primeiro aniversário de sua presidência se referia à teoria que o historiador Ernst Kantorowicz expôs no clássico Os Dois Corpos do Rei sobre a combinação, na figura do soberano, de um aspecto temporário e humano, e outro institucional e eterno. Seus antecessores imediatos, François Hollande e Nicolas Sarkozy, dizia o artigo: eram humanos, demasiado humanos. Macron quis reconciliar ambos os corpos: sintetizar o ser humano e o líder que encarnava uma instituição. Daí a importância da liturgia republicana e da busca obsessiva do contato com o povo, esquivando o Parlamento: os sindicatos, as entidades patronais, a sociedade civil. 
Os banhos de massas remetem, segundo os assessores do presidente, a outro clássico da história do século XX, Os Reis Taumaturgos, de Marc Bloch. “[Para Macron] tocar é fundamental: é uma segunda linguagem”, disse ao Le Monde seu assessor Bruno Roger-Petit. “É um toque performático: ‘O rei te toca, Deus te cura’. Há aqui uma forma de transcendência.” 
Macron não faz milagres tocando os seus concidadãos. Mas houve algo de fervor místico na ideia de que a chegada de um presidente jovem e inteligente, alheio aos velhos partidos e com promessas de renovação, serviria para liberar a França do fantasma da decadência e para frear na Europa a onda de populismo e nacionalismo que meses antes havia triunfado nos Estados Unidos com Donald Trump e no Reino Unido com o Brexit 
O historiador Stanis Perez, autor do Corps du Roi (“o corpo do rei”), recorda que, ao chegar ao poder, Macron era o que os romanos chamavam de homo novus: sem experiência, sem cargos eletivos e desconhecido. “Foi necessário compensar essa relativa virgindade política com sinais ostensivos”, diz Perez numa entrevista por telefone. O historiador estabelece uma diferença entre a encarnação do poder no corpo do rei durante o Antigo Regime e agora. Em seu apogeu, o corpo era visível na corte quase sempre. “Tudo era teatralizado, porque tudo era público.” A encenação não desapareceu — é inclusive mais enfática e alcança um público mais amplo que no século XVII —, mas não é completa e está controlada: a corte não assiste ao despertar e ao deitar-se de Macron. Foi dessacralizada. 
O mesmo ocorre com o aspecto taumatúrgico. “O contato físico é importante, mas separado de toda espiritualidade e com um contexto laico. Pode parecer uma monarquia, mas é uma monarquia falsa: o espetáculo monárquico sem a espiritualidade”, diz. O perigo do que Stanis Perez chama de “majestade do governante” é que, quando o país funciona, ninguém a questiona.

O menino que viaja sozinho entre os milhares de hondurenhos

Mario Castellanos foge do recrutamento por gangues em San Pedro Sula, Honduras Mario Castellanos de 12 anos Foto: folha.uol.com.br ...